quinta-feira, 19 de abril de 2012

Jack and Jill

Achava engraçado se lembrar com tanta suavidade daquele tempo. Enquanto aqueles anos faziam parte do presente trazia tensão, rancor, náuseas, ansiedade e toda gama de coisas que acompanham períodos chamados difíceis. Por alguma razão, seja a passagem de tempo ou a maturidade que acompanha a queda da areia na ampulheta, ela conseguia olhar para trás com tranqüilidade. Assim que saiu do banho quente e passou os dedos no vapor d’água no espelho decidiu que era hora de revisitar aquelas lembranças. Vestiu uma camisola, secou os cabelos castanhos e compridos e se deitou na cama.

A primeira lembrança que lhe ocorreu datava de setembro de 1997, como poderia acusar a fotografia guardada dentro de um dos livros na estante acima da mesa de seu quarto. Eram ela e Jack deitados numa toalha de richelieu, num gramado, num desses dias gostosos onde ainda faz um pouco de frio e a luz do sol se exibe exuberante, dando ao mundo todo, um tom dourado. Sabia exatamente onde estava, num exemplar que reunia uma série de reportagens da extinta Cahiers Du Cinéma, bem no início de um texto bonito sobre o Truffaut. Ainda que se lembrasse com exatidão, não quis pegar a fotografia. Também não se desfaria dela, mas que ficasse exatamente onde estava.

Voltando àquele dia de setembro, Jill se lembrou do sinal tocar enquanto caminhava pelo corredor da escola. Poderia se lembrar de cada detalhe do lugar. Até do cheiro de flores do campo que adornavam o pátio. Enquanto durasse essa sua volta ao passado era ali que vivia agora. Foi nesse instante que sua atenção se voltou apenas para ele. Aquele rosto. O que por anos lhe foi o mais familiar. Era Jack sorrindo do outro lado do corredor de onde sempre encontrava Jill entre o intervalo e a quarta aula. Ela foi até ele que sorriu e a beijou, como sempre fazia, encostando-a com delicadeza no armário. Ela passou um dos braços em volta de seu pescoço. Apenas um. O direito estava engessado devido a um pequeno acidente envolvendo um skate e sua inaptidão em manter-se equilibrada em cima daquilo. Não foi um beijo tão demorado, nem tão quente quanto seriam os posteriores, que aconteciam sempre que tinham a chance de ficar um tempo sozinhos. Mas era desse que se lembrava bem. Como ele era bonito. Tinha os cabelos lisos e compridos até a altura dos ombros, o tom num castanho avermelhado e um par de olhos que ia do castanho ao verde sempre que a luz variava.

A última vez que o vira foi num café no centro da cidade há alguns meses atrás. O cabelo agora curto havia se tornado grisalho, exibia uma barba bem cuidada, vestia camisa social e gravata e lia um jornal. Jill passou quase sem reconhecê-lo e foi se sentar numa das poltronas marrons próximas a tabacaria do café. Abriu seu exemplar novinho em folha de Madame Bovary e pediu um capuccino. Usava um vestido azul turquesa, brincos de argola e maquiagem leve. Tinha o cabelo preso num coque, apenas com alguns fios de sua franja delineando seu rosto. Ainda que já contasse com seus 29 anos, ainda ostentava o mesmo rosto de menina e eflúvios de Carolina Herrera. Por um instante se perguntou se o homem de aparência distinta, o agora semi-desconhecido há algumas mesas dela, ainda usava o mesmo perfume daquela época.

Cerca de 50 minutos e várias páginas do livro que tinha em mãos passaram e ela olhou o relógio. Tomou ciência do horário e se apressou. Deveria encontrar Luke no museu em 5 minutos. Passou pela versão adulta daquele Jack que há muito não era o dela. Repeliu o desejo que sentiu de olhar para trás e caminhou em direção a saída sem reparar no quanto aquele rosto havia mudado, nem ter a chance de se apegar a detalhe algum de quem ele era agora. Pagou o capuccino e saiu. Simples assim.

A última lembrança que lhe ocorreu foi do apartamento que dividiram na cidade. Dos primeiros dias enquanto ele se encantava com o fato dela levantar sempre de excelente humor, cantando alguma melodia como shake, rattle and roll ou caminhando pelo apartamento vestindo alguma camisa dele. Já Jill se encantava com aquele queixo quadrado que dava a Jack feições como as de astros de Hollyood durante a era de ouro, ou vendo o reflexo dos cílios em seu rosto mal barbeado enquanto ele dormia. Jill se lembrou com ternura e um certo aperto no coração dessas coisas. Sabia que o happy end que por anos fora anunciado não viria e lhe veio à mente a canção de Léo Ferre que diz: “Avec Le temps. Avec le temps, va, tout s'en va”. Com o tempo tudo vai embora.

Não saberia dizer ao certo como nem quando se perderam um do outro. Talvez nas inúmeras brigas, onde ficava claro que o amor juvenil de tempos atrás havia se diluído em paixão controladora e mesquinha de ambas as partes. Jill perdeu a alegria de acordar nas manhãs e Jack deixou de lado a maneira carinhosa como olhava para ela. Chronos, Eros ou algumas dessas divindades sem compaixão os desarraigaram dos Campos Elísios e os fizeram afundar em algum rio do Hades. Só cabia a um deles admitir isso.

Jill lembrou-se dessas coisas uma última vez enquanto repousava em sua cama logo abaixo de uma réplica de um dos jardins impressionistas de Monet. Se permitiu chorar uma última vez por quem eles foram um dia. Levantou-se, pegou o livro com a fotografia dos dois, vestiu o robe pérola que estava pendurado no canto do quarto e foi até a sacada. Ignorou o frio congelante que fazia aquela noite. Abriu o livro e encarou a foto uma última vez. Sorriu e continou a olhá-la por mais um instante, depois picou em pequenos pedaços, os juntou na palma de sua mão direita e viu o vento levar para longe pedaço a pedaço daquela recordação de 13 anos atrás. Assim se despediu da lembrança que tinha de seu Jack. Dessa vez para sempre. Entrou novamente no apartamento e foi ler uma revista sobre frivolidades no sofá. Sua expressão era imperturbável, como se aquela fosse uma noite qualquer e nenhuma daquelas memórias tivessem sequer existido.